Pular para o conteúdo

Mangue não é tudo igual!

Há um abismo genético entre os manguezais do Brasil
fonte:  www.oeco,org,br

Por Peter Moon, da Agência Brasileira de Divulgação Científica

 segunda-feira, 14 Maio 2018 08:00

Mangue: mais diverso do que aparenta. Foto: Mariana Vargas Cruz.
Salvem a Amazônia! SOS Mata Atlântica! O Cerrado está sendo destruído! Protejam o Pantanal! E os manguezais, onde ficam nesta história? Metade da área original de mangue do litoral brasileiro já desapareceu. Você sabia disto?
Os manguezais estão entre os ecossistemas mais negligenciados em todo o mundo. “Entre 1983 e 1997, praticamente metade (46%) da área original ocupada pelos manguezais no litoral brasileiro desapareceu, aterrada pelas atividades humanas, como a especulação imobiliária”, afirma o biólogo Gustavo Maruyama Mori, do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Campus do Litoral Paulista, em São Vicente-SP.
A despeito da perda de metade dos nossos manguezais originais, ainda assim o Brasil possui a segunda maior área de manguezal do mundo. Em 2014, estima-se que havia 81,5 mil km2 de manguezais nas regiões tropicais e subtropicais ao redor do planeta. Deste total, 9,5% (ou 7,6 mil km²) ficam no Brasil. Ficamos atrás apenas da Indonésia (23,1 mil km²), e bem à frente do terceiro colocado, a Malásia, com 4,7 mil km².
“Apesar da grande perda de área de mangue registrada nas duas últimas décadas do século 20, desde 2000 ocorreu uma redução significativa na taxa de desflorestamento de manguezais,” diz Mori. “Em 2000, havia 7,7 mil km² de mangue no Brasil. Em 2014, a área caiu para 7,6 mil km², uma perda de menos de 1%.”
Os manguezais brasileiros se espalham por muitas centenas de quilômetros ao longo do nosso litoral, desde o Amapá até Santa Catarina. Os manguezais são ecossistemas que funcionam como uma interface entre o mar e os rios que neles deságuam. Regados diariamente pelos nutrientes trazidos pela água doce, os manguezais são ambientes de extrema importância como berçário de peixes marinhos de valor comercial, como o robalo, e de crustáceos como camarões e caranguejos.
A destruição dos manguezais é uma perda irreparável, com sérias consequências para a atividade pesqueira e para as populações caiçaras que dependem do mangue para o seu sustento,” afirma Mori.
Gustavo Mori coletando espécimes no mangue. Foto: Mariana Vargas Cruz.
No Laboratório de Ecologia Molecular do Instituto de Biociências da Unesp, em São Vicente, Mori e seus alunos estão realizando um grande estudo para entender a diversidade genética do mangue brasileiro. As pesquisas de Mori iniciaram há mais de 10 anos, quando ele ainda era aluno de doutorado da Profa. Anete Pereira de Souza, a chefe do Laboratório de Análise Genética Molecular, do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Geneticista especializada em plantas, Souza lidera diversos grupos de pesquisa que investigam a diversidade genética de plantas de grande valor comercial e ecológico, como por exemplo a seringueira, cana-de-açúcar, capim para pastagens, mangue, entre outros.
“De meu laboratório saiu uma nova geração de pesquisadores. Foram 50 doutores nos últimos 20 anos,” diz Souza. “Eles puderam treinar e aprender as mais modernas técnicas genéticas utilizando equipamentos e material sofisticado. Tudo isto só foi possível graças ao apoio praticamente ininterrupto que tenho recebido das grandes agências de financiamento à pesquisas no Brasil: Fapesp, CNPq, Capes e Finep.”
“O Gustavo é apaixonado pelo mangue. Seu trabalho vem aos poucos revelando aspectos da história evolutiva dos manguezais brasileiros, algo sobre o que não se conhecia praticamente nada até ele se interessar pelo assunto e começar a investigá-lo,” afirma Souza.
“O mangue é formado por plantas muito particulares,” diz Mori. “O fato delas dispersarem suas sementes pela água não é uma coisa que costumamos ver. Outra coisa que me chamava atenção era ver que a maioria das plantas não sobrevive no ambiente de mangue.”
Raízes aéreas de Rizophora. Foto: Mariana Vargas Cruz.
O grupo liderado por Mori e Souza conta com a participação de Patrícia Mara Francisco e seu trabalho de Doutorado sobre a variação genética de 3 espécies de mangue ao longo da costa do Brasil, já descobriu duas coisas notáveis. A primeira delas tem a ver com a diversidade dos manguezais brasileiros. Apesar de compostos pelas mesmas espécies, os mangues da região Norte são geneticamente diferentes dos manguezais das regiões Sudeste e Sul do Brasil. Isto acontece porque as espécies que crescem no manguezal dispersam suas sementes na água, que as transporta ao oceano, onde são levadas pelas correntes marinha que ali circulam. Deste modo, as sementes dos manguezais do Norte flutuam apenas na direção noroeste, enquanto que as sementes dos manguezais do Sudeste e Sul flutuam rumo ao Sul.
Funciona assim: a Corrente Sul Equatorial é uma corrente marinha que atravessa o oceano Atlântico desde a costa africana até o litoral do Nordeste, onde suas águas bifurcam formando duas novas correntes. Ao Norte, a Corrente do Norte do Brasil banha os litorais do Rio Grande do Norte, Ceará, Maranhão, Pará e Amapá. Já a Corrente do Brasil desce pelo litoral do Nordeste, lambendo as costas das regiões Sudeste e Sul do País.
É a direção oposta destas duas correntes que faz com que as populações de árvores de mangue que crescem no Norte e no Sul do Brasil não troquem genes entre si. Decorre daí que, ao longo de milhões de anos de evolução, as espécies do mangue foram tendo características selecionadas de maneira que as duas populações se adaptassem às condições das diferentes regiões do litoral brasileiro. A minuciosa investigação genética levada a cabo pelos pesquisadores pôde verificar que os manguezais do norte do Brasil são, por exemplo, adaptados à maior insolação equatorial, enquanto que os manguezais do sul podem crescer num regime de menos dias de sol ao longo do ano.
“A gente verificou que a diferença entre as mesmas espécies de mangue que ocorrem no Norte e no Sul é, em termos genéticos, gritante!” afirma Souza.
Cabe aqui um parênteses para explicar exatamente o que vem a ser o mangue. Manguezal é como se chama a floresta composta por espécies de mangue, que é um tipo específico de plantas (são árvores) adaptadas a crescer em ambientes litorâneos inundados diariamente pela maré alta. Em outras palavras, trata-se de um ambiente que quase nenhuma planta terrestre toleraria… à exceção do mangue.
Existem dois gêneros que ocorrem nos manguezais de todo o mundo, Avicennia e Rhizophora. Apesar de pertencerem a famílias e ordens completamente diferentes, ou seja, são evolutivamente muito distantes, não possuindo ancestrais comuns próximos, Avicennia e Rhizophora se adaptaram às condições específicas dos manguezais.
As condições daqueles locais à beira mar que sofrem a influência da maré exigiram que Avicennia e Rhizophora desenvolvessem soluções adaptativas engenhosas e semelhantes. Elas suportam viver em ambientes alagados tanto pela água doce dos rios quanto pela água salgada das marés. Avicennia e Rhizophora germinam e crescem fincando suas raízes no lodo do manguezal, um substrato movediço que, embora rico em nutrientes trazidos pelos rios e pela maré, é quase completamente anaeróbico, ou seja, desprovido de oxigênio. Como adaptação à pobreza de oxigênio do lodo instável, Avicennia e Rhizophora desenvolveram raízes aéreas, que permitem lidar com a falta de oxigênio e sustentar a árvore mesmo quando a maré sobe e o solo encharca. “Avicennia possui raízes aéreas pequenas, de até uns 15 centímetros e que conseguem respirar. Já as raízes de Rhizophora podem se estender em arcos que chegam a vários metros de comprimento,” explica Mori.
Espécimes de mangue selecionados para estudo em laboratório, na Unicamp. Foto: Mariana Vargas Cruz.
Por causa das marés, o lodo dos manguezais é extremamente salino. E a presença de sal no solo é fator inibidor para a germinação de quase todas as plantas terrestres – menos as árvores de mangue. Elas possuem adaptações que permitem às suas raízes absorver a água salgada e dela extrair o sal marinho, que é então expelido, por exemplo, através da superfície de suas folhas. Aí o vento e a água da chuva executam o resto do serviço, ao soprar ou lavar a superfície das folhas, varrendo todo o sal acumulado.
Para dispersar suas sementes, as plantas em geral fazem uso de diversas estratégias. As sementes podem simplesmente cair no chão e germinar ali mesmo, elas podem ser levadas pelo vento, ou podem ainda ser dispersadas nas fezes dos animais que se alimentam dos frutos que abrigam as sementes. Com o mangue não acontece nada disto. As sementes são dispersas na água da maré vazante. São sementes bastante resistentes à ação corrosiva da água do mar, e que, uma vez no oceano, podem flutuar por várias semanas e até meses conservando o seu poder germinativo até ir dar numa área onde poderão, então, germinar e crescer. É por causa desta estratégia de dispersão que os mangues do Norte do Brasil são diferentes geneticamente dos mangues do Sudeste e do Sul.
Há dezenas de espécies de Avicennia e Rhizophora crescendo nos mangues de todos o mundo. No Brasil, só existem cinco. São duas espécies de Avicennia e três de Rhizophora (R. mangle, R. racemosa e uma espécie híbrida entre elas, R. harrisonii), sendo este último gênero popularmente conhecido como mangue-vermelho. “Rhizophora é o gênero símbolo do mangue. Por ser a mais resistente à influência da maré, muitas vezes cresce à beira d’água, formando o cartão-postal mais visível do mangue para os banhistas e para os turistas que seguem ao litoral e, para chegar nas praias, precisam cruzar áreas de mangue,” explica Mori.
Já Avicennia, gênero comumente chamado de mangue-preto, sereíba ou siriúba, tem duas espécies que ocorrem no Brasil, Avicennia schaueriana e A. germinans. Ambas crescem em terrenos um pouco mais distanciados da beira d’água, onde domina Rhizophora.
“As ferramentas genéticas de que dispomos nos dão condições de fazer um diagnóstico genético bastante acurado da devastação sofrida pelo mangue. A técnica de análise por marcadores moleculares, chamados microssatélites, permite identificar o quanto de uma região de floresta foi degradada,” explica Souza.
O grau de degradação se revela a partir da comparação dos microssatélites do genoma nuclear (o DNA) das árvores que compõem uma mesma área de mangue. “O trabalho é feito por amostragem e comparação do genoma das plantas. Desta forma, a gente consegue saber quão diferentes ou semelhantes são os indivíduos de uma mesma população,” explica Souza.
Quando o DNA das árvores é muito parecido, muito próximo, isto sugere que elas descendem de um mesmo pequeno grupo de plantas ancestrais, provavelmente aquelas que sobreviveram ao desmatamento, podendo assim repovoar a área. “Quando encontramos num manguezal muitas plantas com as mesmas variações genéticas, significa que ali não existe mais uma diversidade genética expressiva,” diz Souza.
De modo inverso, se o DNA das árvores do mangue é diverso, revelando grande variedade genética dentro de uma mesma população, isto sugere que houve tempo para se acumular diversidade genética, via mutações, dentro da mesma população, logo trata-se de uma floresta antiga, formada por vegetação primária.
“Quando as plantas de uma população perdem diversidade, isso é um problema. Elas podem definhar, podem apresentar problemas de crescimento ou de adaptação. As plantas que não possuírem mais os genes que conferem, por exemplo, resistência à falta de água, podem morrer quando vier uma estiagem,” explica Souza. “Neste sentido, as populações de mangue com baixa diversidade genética podem vir a sofrer mais com os efeitos das mudanças climáticas.”
Tomemos o exemplo de Avicennia. As árvores que crescem nos manguezais do delta do rio Amazonas são mais adaptadas à maior insolação e ao clima mais quente. Por outro lado, Avicennia que cresce nos manguezais na região de Florianópolis sobrevive bem em ambientes não tão quentes, com menor luminosidade, e baixas temperaturas durante o inverno. “Isto significa que projetos de reflorestamento de manguezais na região Norte não podem ser feitos com mudas trazidas do Sul, e vice-versa. As mudas irão morrer,” diz Souza.
Mori e Patrícia desenvolveram um sistema de marcadores para poder identificar semelhanças e diferenças entre as mesmas espécies de mangue que crescem em regiões diferentes. Foram usados mais de 40 microssatélites para estudar as espécies.
Uma das descobertas mais surpreendentes foi a ocorrência de hibridização entre espécies diferentes de Avicennia. “Hibridização é um processo evolutivo que permite o fluxo gênico, ou a troca de genes entre espécies diferentes. A gente não só identificou híbridos em Avicennia, como verificou que indivíduos desta primeira geração de híbridos também conseguiram cruzar. Agora queremos descobrir qual é o processo que está por trás do aparecimento destes híbridos.”
Os próximos passos da pesquisa, já em andamento, envolvem a identificação e análise de um outro tipo de marcadores moleculares, os chamados SNPs (pronuncia-se “snips”, que quer dizer polimorfismo de nucleotídeo único). “Se, no caso dos microssatélites, conseguimos desenvolver algumas dezenas de marcadores, no caso dos SNPs a ordem de marcadores será na casa dos milhares,” diz Mori. “Assim, poderemos realizar uma análise genética muito mais refinada da variabilidade genética que existe nas espécies do mangue.”
Com isto, diz Mori, pretende-se obter respostas para as seguintes perguntas: “Como será que as espécies responderão às novas condições climáticas? Elas vão se adaptar? Se sim, de que forma? Quais são os genes que permitem fazer com que duas populações de uma mesma espécie ocupem ambientes tão diversos?”
http://www.oeco.org.br/reportagens/mangue-nao-e-tudo-igual-ha-um-abismo-genetico-entre-os-manguezais-do-brasil/?utm_source=wysija&utm_medium=email&utm_campaign=Newsletter+Diaria